quarta-feira, 15 de setembro de 2010

literatura: 'recordações da casa dos mortos', de fiodor dostoievski

'o que eu queria era mostrar-vos o nosso presídio e tudo quanto aí passei durante esses anos, por meio de um quadro compreensivo e claro. não sei se consegui esse objetivo, em parte, não me compete a mim apreciá-lo. mas estou convencido de que posso acabar aqui. além do que, às vezes, com estas recordações, me sinto triste'. (trecho de 'recordações da casa dos mortos', de fiodor dostoievski)

em 1829, o escritor russo fiodor dostoievski foi preso e condenado à morte por frequentar reuniões de um movimento socialista conhecido como 'círculo de petraschevki'. no entanto, instantes antes de sua execução, diante do pelotão de fuzilamento, o escritor teve sua pena convertida para quatro anos de trabalhos forçados num campo de concentração na sibéria. 'recordações da casa dos mortos' é um relato romanceado, que parte de algumas premissas fictícias, para descrever o ambiente de penúria no qual o escritor viveu durante a prisão.
embora seja um registro de caráter biográfico, o livro não tenta estabelecer uma ordem cronológica precisa. além disso, alguns fatos realmente vividos por dostoievski são atribuídos a outros personagens. por exemplo, o fato de ele ter sido um preso político. de qualquer modo, alexander petrovitch, o personagem central do livro, é o seu alter ego e, através dele, o leitor é conduzido à ‘casa dos mortos’.
 o ponto central para dostoievski é, na verdade, expor seu estado de espírito durante o cárcere. durante a leitura, é possível perceber que a grande sutileza da obra foi justamente diluir os fatos e tentar criar uma linearidade psicológica do personagem desde a sua prisão até o momento da liberdade. por exemplo, a longa parte inicial, que sem nenhum grande acontecimento, realça muito bem o estado de profundo abatimento, extrema solidão e silêncio dos seus primeiros meses na prisão. do mesmo modo, há também a descrição da comoção sentida nos pequenos episódios que antecedem o momento da sua liberdade no fim do livro.
 um detalhe que chama muito a atenção é a vida social do presídio, cuja grande maioria da população carcerária é formada, obviamente por homens nascidos na pobreza, com pouquíssima ou nenhuma instrução. à medida que o livro avança, dostoievski nos apresenta os diferentes tipos que povoam o presídio, a maneira como eles se organizam e, principalmente, a percepção que cada um tem de si mesmo e da cadeia.
 durante todo o livro, é perceptível o forte contraste entre alexander petrovitch e os demais prisioneiros. vê-se com muita clareza que um dos piores aspectos da pena foi o isolamento intelectual vivenciado. o único livro permitido era a bíblia. ao mesmo tempo, há poucos pares dispostos ao debate ou interessados em questões mais profundas que, naturalmente, ocupavam a mente de dostoievski durante o cumprimento da pena.
 'recordações...' é literatura de primeira grandeza, mas, em nenhum aspecto, é um livro recreativo. o tom auto-biográfico reforça ainda mais esse traço. o texto nos mostra um homem isolado num ambiente aterrador, macabro e violento. é muito difícil manter-se indiferente às mazelas ali descritas: há pouquíssimo espaço para alegria ou leveza. ainda assim, é uma leitura atraente pelo tom confessional imposto pelo autor, assim como, pela sua facilidade em verbalizar impressões e sentimentos de maneira magistral. no fim, a grande lição deixada é que o valor da vida fica muito mais evidente quando nos vemos privados da possibilidade de viver com plenitude. acima de tudo, 'recordações...' é um relato humanitário.